🤔 Para Refletir : "A verdadeira ideia criativa vem do momento mais simplório do dia." - Yonori Akari

O estranho caso do maníaco da Rua Brayner

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O estranho caso do maníaco da Rua Brayner - Por Gabriel Vivanovitz

Se eu for parar para pensar, os dias que aconteceram as coisas mais mirabolantes em toda a minha vida, foram os começaram de forma amena. Pensem comigo, se o dia começa ruim, com você acordando assustado por conta de um pesadelo, ou sei lá, cai da cama, normalmente já sente que, dali em diante, é só ladeira abaixo. Quando o dia começa muito bem, um sonho bom, uma mensagem esperada assim que você acorda ou o anúncio de que não haverão aulas, tendemos a pensar que é impossível que o dia piore. Agora, nos dias amenos, parece que o mundo fica um pouco mais silencioso, quase que na expectativa de que algo ocorra, como se toda a existência apurasse os ouvidos esperando um grito, uma risada macabra, ou ambas as coisas.

É possível que essa seja uma impressão que apenas me caiba, todos somos cheios de superstições, mas, independente do que pensemos, eu estava certo naquele dia, pois um esganiçado grito de terror foi o arauto da agitação e, para piorar, era de mim que o grito que ecoava por toda a extensão da Rua Brayner saia.

Tudo começou em uma manhã fria e chuvosa de inverno enquanto eu estava olhado para baixo para tentar evitar ao máximo molhar a barra da calça com as poças que pontilhavam o chão de paralelepípedos em que caminhava no meu trajeto para o Colégio quando percebo que as poças começavam a apresentar uma coloração um pouco fora do comum. No início, pensei que era o barro vindo do solo um pouco esburacado, mas não podia estar mais enganado. A cada passo o tom vermelho foi ficando cada vez mais forte e um cheiro ferroso começou a tomar conta de minhas narinas, o que me fez retesar. Havia algo estranho no ar, eu podia sentir, porém decidi deixar para lá, pois tinha um trabalho importante para entregar naquele dia.

Continuei seguindo meu caminho enquanto a chuva, batendo em meu guarda-chuvas, cantava uma triste melodia em meus ouvidos. Nunca fui fã do inverno, acho-o um clima que tende à melancolia. Ficamos mais recolhidos em nossas casas e só saímos em casos de extrema necessidade. As ruas ficam vazias, dando uma certa liberdade para a natureza se pôr mais presente, o que é bom, porém e quando a própria natureza se põe silenciosa?

Havia algo de antinatural no ar e eu podia sentir, fora que já tinha sentido aquele cheiro ferroso antes. Pela cor forte do que estava diluído na água, a sua fonte estava cada vez mais próxima e era impossível para mim parar de buscá-la. Não precisava levantar a cabeça para saber que tinha algo errado, podia ter dado meia volta e chegar com uma desculpa em casa, mas escolhi a curiosidade, porém, as vezes ela nos dá memórias para a vida toda e, vai por mim, na maior parte das vezes essas memórias não são nada positivas.

O que estava a poucos passos de mim era o que parecia ser o corpo, ou melhor, a parte do corpo de um morador de rua que eu tinha visto perambulando pelas ruas próximas há uns dias atrás, com sua barba longa e grisalha por fazer, cabelos desgrenhados e vestes gastas pelo tempo e pelo uso constante, ou, pelo menos, o que sobrou delas. Em suas costas, haviam sinais de profundas marcas de garras e faltavam lhe as pernas e um dos braços, o esquerdo. Mas o que mais me assustava era a massa de carne que tinha se tornado seu rosto que, naquela altura, nem parecia mais o de um humano. Alguns passos à frente, lá estavam as pernas, junto delas, um rato morto e esmagado, como se um carro tivesse passado por cima dele. Não me pergunte como reparei no rato com toda aquela cena grotesca na minha frente, nem eu sei por que tal fato me chamou a atenção.

Olhando para aquilo tudo, eu respirava de forma acelerada e, sem ao menos pegar fôlego, gritava a plenos pulmões, para logo então cair de joelhos e vomitar no chão. Depois disso, não lembro de muita coisa. Me senti flutuando como se estivesse sendo carregado, mas não queria abrir os olhos, não queria ver mais nada. Eu ouvia algumas vozes, mas elas pareciam estar estranhamente longes, mesmo sentindo que estavam vindo dos meus arredores. O sofrimento que aquele homem devia ter passado nos seus últimos momentos de vida era algo inominável. “O que poderia ter feito algo assim com uma pessoa adulta no meio da cidade?!” era o que a minha mente pertubada pensava e, sem surpresas, não chegava a nenhuma conclusão.

Lembro que as aulas daquele dia oram canceladas, mas ninguém relaxou. O temor se espalhava como uma epidemia por toda a rua e não tinha nada que pudesse ser feito. No mesmo dia, dois carros de polícia vieram até nós com perguntas para fazer. Era algo como se conhecíamos a pessoa atacada, se tínhamos ouvido algo de noite ou se vimos algo suspeitos nos dias que antecederam o ataque, mas todas as respostas foram negativas. O homem atacado era um indigente que caminhava pelas ruas do bairro, homem sem história conhecida e sem familiares próximos, uma completa incógnita para todos os que moravam aqui.

Pobre alma que eu queria apenas esquecer que vi em estado tão deplorável. Na vida sempre cabe a melhora, dizia meu avô. Quando uma acaba por terminar de forma tão abrupta e violenta, sinto que o mundo perde algo que não sei identificar, talvez um certo brilho.

Quando voltei a mim, lembro-me de estar no meu quarto, deitado na cama, fitando o teto, que simulava um céu estrelado, era um dos meus orgulhos, pintei no fim do ano passado pois adorava o céu noturno. Só de pensar o que aquelas estrelas testemunharam... Um suspiro me vinha à boca e, não importa o que eu fizesse, a cena daquela manhã não saia da minha cabeça. O meu relógio de parede marcava 13:13, mas eu não tinha a menor fome. O cheiro ocre do sangue ainda inundava todo o meu olfato e era impossível não ficar enjoado, pobre homem, destroçado como um animal de feira.

Corro para o banheiro e, sendo sincero, já devem ter alguma ideia do que voltou a acontecer. Ouvi gritos perguntando se eu estava bem e com uma voz embargada entre uma tosse e outra com cabeça quase dentro do vaso, respondo algo como um “Tô sim, mãe!”, mas não acho que foi muito convincente. Me sentia sujo, e era bem capaz que eu estivesse mesmo. Entro no chuveiro e tento relaxar um pouco, talvez fosse melhor não almoçar mais naquele dia, para evitar qualquer tipo de acidente.

De qualquer forma, além das imagens de todo o ocorrido, uma outra coisa não saia da minha mente, e era aquela pergunta que eu tinha feito quando achei o corpo. Quem ou o que tinha causado tamanha carnificina, o que seria capaz daquilo?! Nada me vinha a mente. Era simplesmente impossível um bicho que pudesse fazer tamanho estrago com um ser humano adulto passar despercebido num lugar tão movimentado como aquele. Afasto logo qualquer pensamento sobre o ocorrido pelo fato de eu estar amedrontado o suficiente naquele ponto. Com certeza o que me esperava era uma péssima noite de sono…

O resto do dia passou como as imagens de uma janela de um ônibus em movimento, não lembro de absolutamente nada. Talvez esse seja o tão falado “estado de choque” que todos dizem. O sono não demorou a vir, mas junto com eles vieram os pesadelos que não deixavam de me atormentar. O rosto desfigurado do homem, suas tripas como uma corda que ligavam a parte superior à inferior do corpo, um grito de profundo horror no escuro.

Pulo da cama, suor frio encharcando todo o meu corpo. Olho pela janela percebo uma grande movimentação na rua. Na hora pensei que outra tragédia havia ocorrido, e de certa forma tinha, mas desta vez não envolvia a morte de alguém, pelo menos não diretamente.

A princípio, a imprensa local não tinha dado muita importância para um sem-teto estripado num subúrbio afastado do centro, mas quando as fotos do ocorrido infestaram as redes sociais como fogo no mato seco, eles se viram na obrigação de cobrir a notícia. Porém, não foi só uma emissora que veio noticiar toda a situação da vizinhança, mas sim todos os veículos de imprensa, dos formais aos informais, de toda a cidade. Com eles, alguns carros da polícia também voltaram à cena, junto de um médico legista e de um veterinário, o que dava a entender que ambos estavam participando do caso.

Da viatura de polícia, saíram dois homens de fardamento azul-escuro, boina e rostos sérios como se esculpidos em pedra. Ouvi explicarem para os repórteres que as investigações estavam em andamento, mas sabia que aquilo não passava de uma mentira deslavada, já que era mais fácil eu ver o Papai Noel sair na porrada com o Coelhinho da Páscoa do que ver homens fardados patrulhando as ruas próximas. Aquele lado do bairro era um tanto quanto esquecido por todos. Mesmo que o crime tenha chocado a população num todo, eu dava alguns poucos dias para todos esquecerem que a Rua Brayner existia, com certeza não seria a primeira vez.

Não sei como, mas acabaram sabendo que fui o primeiro a achar o corpo e, a partir desta reveladora notícia, meu dia passou a ser bem movimentado, como nunca foi antes. Depoimentos e entrevistas me atazanaram até eu pegar birra de outros seres humanos. Fui obrigado a repetir e reviver aquela cena macabra várias e várias vezes na minha mente para poder simplesmente sanar a curiosidade de um público que não estava nem aí para o que eu pensava ou sentia. Entendo que estavam apenas fazendo apenas o seu trabalho, mas sabe quando você percebe que há algumas partes no trabalho das pessoas que é um tanto quanto repugnante e nem nos damos conta, são situações como essas que nos fazem pensar, as vezes.

Depois desse dia, devido a fala dos legistas e do veterinário, começaram a surgir boatos de que um lobo estava a espreita pela região, então foram organizados alguns grupos de caça para acharem a fera, mas nenhum mísero pelo foi encontrado mesmo com semanas de busca, que foram abandonadas logo em seguida. Foi aí que, para não deixar a notícia morrer, algum jornaleco menor noticiou que o ataque não tinha sido de um lobo, mas sim de um lobisomem e isso explicava o porquê de não encontrarem nenhuma prova da besta. Era um artigo que ocupava umas 3 páginas do tal jornal, intitulado “O Diário de Oldamp” que gerou reações adversas, descrença em alguns, sorrisos em outros, mas no geral, ninguém levou a sério. Que imprensa séria estamparia em usa capa “O estranho caso do Lobisomem da Rua Brayner”. Era um absurdo que foi devidamente esquecido por todos.

Como não houve casos próximos ao do senhor sem-teto, a vizinhança mergulhou de cabeça numa falsa sensação de paz e sossego, sensação esta que não durou por muito mais tempo. O alvo do ataque desta fez tinha nome e endereço. Era conhecida como Dona Atlanta, senhorinha que morava numa casa gradeada na esquina da nossa rua. Não me deixaram ir lá ver, e também não é como se eu quisesse, mas neste ponto, o meu querer não importava, já que mais uma vez a internet era inundada por fotos, vídeos e tudo o que você podia imaginar sobre o ocorrido.

A pobre senhora tinha o seu corpinho rechonchudo preso aos espigões da grade de seus muros e claramente possuía, assim como no primeiro caso, partes do seu cadáver faltando, as marcas de garras e mordidas também se espalhavam por todo corpo e, se olhássemos para o seu rosto, ainda era perceptível nos traços tensos do horror sofrido antes do obto.

O que quer que tenha a atacado tentou levá-la consigo, mas acabou não conseguindo devido aos espigões do gradeado. Incontestavelmente, o que estava exposto diante de nós era nada mais, nada menos do que outro banho de sangue macabro, que servia para mostrar por A mais B que ninguém ali estava seguro, ninguém estava a salvo.

O mais intrigante era a mensagem marcada com sangue abaixo do seu corpo pendurado. Nela, os seguintes dizeres gravados na pedra com o que parecia ser o próprio sangue da vítima: “MAIS UM E ESTARÃO LIVRES DE MIM”. Ao lado da frase, outro rato morto podia ser visto esmagado no muro. Não dei muita atenção ao rato no momento, até porque havia algo muito mais importante para prestar atenção. Aquela era uma frase simples, mas carregava um grande e aterrorizante significado. Primeiro, o algoz daquelas pessoas era um ser inteligente, segundo, haveria ao menos mais um ataque. Não era um lobo, afinal, mas sim um ser humano. Não sei se era pelo fato de eu ser novo, mas saber daquilo me fez perder uma boa parcela de fé que eu tinha na humanidade. Como um ser racional era capaz de fazer algo tão hediondo a um ser da mesma espécie... Não estávamos seguros coisa nenhuma, pelo contrário, todos corriamos risco de vida.

A partir daquele momento, incumbi a mim mesmo o dever de desvendar aqueles assassinatos brutais, porém, admito que eu não sei se mudaria algo caso acabasse descobrindo o que tinha matado aquelas pessoas, talvez a informação até piorasse tudo, instaurando na mente e no coração de todos o mais primitivo dos medos, algo que nos fizesse relembrar de tempos passados, o terror proveniente da sensação de ser a presa, de estar sendo caçado.

Depois do segundo ataque, passamos a viver mais um período de calmaria. Dê um pouco de tempo e uma rotina ao homem que os acontecimentos param de alarmá-lo como deviam. O muro da D.ª Atlanta foi lavado logo depois que os policiais terminaram as investigações e todos esqueceram da ameaça que ficou no ar após o seu assassinato, todos menos eu. Mais alguém da vizinhança morreria nas mãos daquela criatura, e ninguém estava dando a mínima.

Dia após dia, noite após noite, eu acabei ficando na vigília do telhado da minha casa, mas nas primeiras semanas, a única coisa que eu consegui ver pelas lentes dos meus binóculos foi algumas brigas de gatos nos telhados vizinhos e dois ou três bêbados tropeçando aqui e ali madrugada afora. As aulas foram canceladas devido a todo o ocorrido, então por algumas semanas, a minha rotina foi ficar em cima daquele telhado vendo a vida de todos seguir os seus cursos naturais até que eu o vi pela primeira vez e tudo mudou.

Teve um dia dos muitos que fiquei de prontidão nos telhados da minha casa que, na calada da noite, enquanto eu estava prestes a dormir mais uma vez ao relento que algo estranho finalmente aconteceu. Diferente dos bêbados habituais que eu me acostumei a ver, algo que parecia ter a altura de um homem comum, encapuzado dos pés a cabeça com vestes completamente negras, vinha lentamente por toda a extensão da rua num pesaroso andar, como se tivesse dificuldade em fazê-lo. Mesmo que me esforçasse, não conseguia ver seu rosto. Porém aquele homem, mesmo vigiando-o de tão longe, me dava arrepios.

Continuei a observar sua penosa caminhada até ele parar na frente da casa de número 16 e, quando eu menos esperava, o estranho encapuzado tirava de um dos seus bolsos um rato vivo, e foi neste momento que eu entendi a ligação dos ratos mortos com os assassinatos. Mas o que mais me surpreendeu nisso tudo foram suas mãos e… Só posso dizer que era algo perturbador de se ver. Mal dava para ver a pele de seu torso, pois aquela mão era coberta por uma grossa pelagem castanho-escura, porém, o que mais me dava calafrios eram suas unhas que mais se assemelhavam a garras e no mesmo momento que as vi, lembrei do artigo do Diário de Oldamp, realmente estávamos lidando com um lobisomem.

Ele estava parado, na frente da casa 16, observando o ratinho se contorcer em suas mãos, e foi nesse ponto que as minhas suspeitas se concretizaram. Em um simples e trivial movimento, o homem que eu vigiava esmagava o animal ainda vivo no muro da casa, espalhando o sangue e vísceras pelo muro, claramente marcando o seu próximo alvo. Eu tinha que avisar a quem morava naquela casa que eles estavam correndo risco de vida, eles precisavam sair de lá o mais rápido possível!

Quando eu ensaiava descer do telhado, percebo que, após finalizar o macabro ato de marcar a casa, o homem simplesmente se afastou calmamente, do mesmo jeito que chegou, dando a crer que o ataque não se daria naquele momento, porém, eu tinha certeza de que estava bem próximo. Mal consegui dormir naquela noite já que estava agitado demais, por conta das recentes descobertas, para pregar os olhos.

O dia raiou e realmente não tinha conseguido dormir absolutamente nada, mas nada que um bom café da manhã e um banho frio não resolvessem… A quem estou enganando, eu estava destruído. Minha sorte era que a manhã estava livre e fora algumas obrigações da casa, não tinha muito mais coisa para se fazer. De qualquer forma, tinha uma missão a cumprir, e foi com isso em mente que rumei para a casa de número 16, para salvar a vida de quem quer que estivesse por lá de um triste e violento fim.

Ao chegar na frente da porta, dou três batidas e escuto bem de longe um “Peraê, já tô indo!”. Alguns minutos se passam e nada daquela voz me atender. Bato outra vez e volto a ouvir um “Calma aê, ô! Se é cobrança, digo logo que tá tudo pago!!”. Não sei explicar bem o que foi que aconteceu, mas aquilo me deu nos nervos, e eu só conseguia pensar “Parece que temos aqui um ser humano que não quer ser salvo…” mas eu não desistiria tão fácil assim.

Quando ensaio uma terceira batida, a porta se abre e, para a minha surpresa, quem me recepcionava era uma menina, mais ou menos da minha idade, com umas calças largas e uma camiseta folgada. Ela tinha cabelos cacheados que chegavam aos ombros, pele cor de âmbar e um olhar penetrante que passava uma mensagem bem direta, dizendo “me encha o saco mais uma vez e você levará um socão bem no meio da fuça”. Ela era REALMENTE linda, tanto que, por um momento, fui pego de surpresa, mas ela, irritada com a minha pressa, foi a primeira a falar:

— O que é que você quer? Me atazanou tanto pra ficar mudo agora?! — É… Você…

— Bora menino, desembucha!

— Você e sua família correm sério risco de vida! — Pronto, falei. Ela olha para mim como qualquer ser humano que ouve um absurdo desses do nada, com incredulidade, fechando assim a porta na minha cara. Tento travá-la usando o pé, mas nada feito, a única coisa que consegui foi apenas sentir uma baita dor e um dedo machucado. Com a porta já fechada, continuo a tentar alertá-la:

— Eu vi um estranho parado aqui ontem e é bem capaz que ele seja o assassino que ronda a nossa vizinhança. Por favor, vamos conversar, eu falo a verdade! — Nenhuma resposta. Foi aí que pensei “que se dane!” e voltei para a minha casa batendo fortemente o pé contra o chão. “Se ela não queria ouvir, o problema é dela e da família dela. Depois de hoje tudo isso vai acabar mesmo.”

Vou embora para o meu quarto, emburrado, e me jogo na cama, porém não consigo relaxar. Eu tinha que convencê-la de que ela e toda a sua família corriam perigo, mas como eu faria isso é outra coisa, já que voltar lá e bater a sua porta mais uma vez estava fora de cogitação.

Então só havia uma única escolha, motar guarda a noite toda torcendo para que o pior não acontecesse. Porém, precisava estar preparado para tudo, então fiz alguns preparativos nada confiáveis durante o dia. Roubei alguns sprays de pimenta do estoque da minha mãe, já que ela guardava em uma boa quantidade pois voltava muito tarde para casa e a rua era bem estranha, ela preferia comprar vários na promoção do que comprar de 1 em 1; a maior das facas que tínhamos em casa; uma poltrona, pois se eu fosse esperar pela morte iminente, seria feito da maneira mais confortável possível.

As horas se passavam lentamente conforme o céu mudava de um vívido azul para tons de laranja e depois o mais profundo dos tons escuros. Se fazia noite na Rua Brayner, e eu estava entediado. Busquei comida, fiz uns exercícios e até joguei um pouco de videogame da janela do quarto, mas me senti um pouco culpado por não estar realmente prestando atenção e logo desliguei. Precisava estar atento a qualquer movimento na rua, não podia deixar passar nada.

Sobre a cabeça do mundo, uma incrível lua cheia brilhava sozinha, rainha de um céu sem estrelas, sem nuvens, apenas dela. Eu queria estar errado, mas ela era uma tremenda pista do que estávamos prestes a enfrentar.

Acabei escutando a criatura antes de conseguir vê-la, mas quando finalmente a vi, não acreditei. Pulando de telhado em telhado, estava diante do maior lobo que eu já vi na vida. Ele possuía uma anatomia diferente, era mais humanoide. Os braços e as pernas eram compridos e finos, suas costas arqueadas e sua altura passava fácil dos 2 metros. O lobisomem saltava de telhado em telhado como se fosse um passeio no parque, até entrar pela janela do primeiro andar da casa. Logo após, um grito agudo pôde ser ouvido e eu olhava a toda aquela cena estarrecido.

Um grito feminino me tirou do meu estado de estupor, tinha que me apressar para salvar as pessoas daquela casa. Desço correndo as escadas e abro as pressas a porta que dava para a rua. Munido da minha faca e dos spray de pimenta, vou ao confronto do monstro para salvar a “dama”, ou era isso o que eu pensava.
Assim que eu cheguei na porta dela, ouvi sons de tiros vindos de dentro da casa e, ao tentar ver o que acontecia lá dentro, percebi que a porta da frente já se encontrava aberta. Não penso duas vezes para me lançar porta adentro, mas, para a minha surpresa, dou de cara com a garota que estava tentando salvar, perdendo a faca no processo. Ela se assusta tanto quanto eu com o que aconteceu, mas um barulho vindo de trás chamou a atenção de ambos.

Descendo as escadas lentamente em duas patas enquanto se apoiava no corrimão, o lobisomem era aterrorizante. Suas garras eram maiores do que muitas das facas que já vi na vida e seus dentes, ou melhor, presas pense no mais feroz, no maior, no mais amedrontador dos animais carnívoros e entenda, nenhum dos que você conseguir imaginar se igualará ao que estava diante de nós. Agora, um dos detalhes que mais me chamou a atenção foram seus olhos, cuja pupila ocupava-o por inteiro. Era como se estivéssemos face a face com a escuridão primordial, com a falta de existência, de luz, de esperança. Todos esses detalhes gritavam apenas uma mensagem em nossas mentes, “vocês não sairão vivos daqui hoje”.

Talvez, se dependesse de mim, eu tinha me rendido ao terror daquela presença aterradora, mas isso nunca esteve nem perto de passar pela cabeça da garota. Acho que se render não fazia parte do dicionário dela.

— Bora homem, levanta, precisamos correr!! — dizia exasperada, o que me fez acordar para a vida e finalmente sair do chão. Ela segurava a minha mão e me puxava para fora da porta, trancando-a assim que passou para fora. Sabíamos que aquilo não o pararia, mas estávamos torcendo para que o atrasasse ao menos um pouco enquanto corríamos pela Rua Brayner quase às cegas devido a péssima iluminação.

— O que faz aqui e o que diabos era aquilo?! — falava ofegante e, para ser sincero, esta pergunta me deu uma grande vontade de dar uma rasteira nela e deixá-la para virar comida de lobisomem.

— Eu avi…

— Se falar isso, eu juro que atiro em você. — foi aí que percebi a arma em suas mãos, uma calibre 12, daquelas que o Exterminador do Futuro usava em seus filmes.

— Atirou nele com isso? — perguntava um eu que também se esforçava para puxar o fôlego devido ao exercício abrupto.

— Não, aqui a gente só trabalha com coronhadas. — ela revirava os olhos e tive que segurar, mais uma vez, a vontade latente de botar o pé para ela cair, porém, ao invés disso, apenas perguntei:
— E agora, para onde vamos? — e mais uma vez, uma resposta desaforada.

— Mas que grande salvador você é, ein? — já estava começando a me arrepender de ter ido salvá-la quando ela me empurra para o lado enquanto um enorme vulto passa voando pelo exato ponto onde eu estava segundos atrás. Antes de levantar, vejo-a disparar duas, três vezes contra o peito da criatura, fazendo-a recuar alguns passos, para então correr em minha direção e me levantar. Aquilo desnorteou a besta, dando-nos tempo para continuar nossa corrida.

Estendendo a mão para mim, seguimos rua afora para o lugar que talvez tivéssemos a maior chance de nos escondermos. Tal lugar era um casarão abandonado. A família que havia vivido ali simplesmente sumiu há alguns anos, deixando para trás todos os seus pertences. Com o passar do tempo, todo o tipo de pessoa usou o local, todo o tipo MESMO. Grande parte das janelas estavam quebradas e as suas paredes ostentavam pichações de várias cores e grafias diferentes, tirando o fato de que o casarão era assustador aos olhos, ele quase parecia uma obra de arte moderna.

Ainda assim, era melhor adentrar no assustador casarão, do que ficar apostando corrida com aquilo que nos perseguia. Por muitas vezes nós quase fomos pegos, mas contamos com alguns pequenos milagres e com a eficiência da menina com sua arma em mãos, atrasando-o sempre que ele diminuía a distância entre nós. No nosso caminho para o nosso abrigo, percebíamos que algumas luzes eram acesas dentro das casas, estávamos fazendo bastante barulho e era impossível que os vizinhos não tenham ouvido.

Esperava que eles nos ajudassem de alguma forma, mas não conseguia depositar todas as minhas fichas neles. Chegamos nos muros do casarão e a criatura tinha sumido, mas mesmo assim, não relaxamos. Pulo o gradeado com dificuldade e seguro a arma dela para que pudesse pular de maneira mais fácil. Foi então que me dei conta, eu não fazia a menor ideia de quem era a pessoa que eu tinha ido salvar. Então aproveitei o momento de calmaria para sanar as dúvidas:

— Ei ser humano, com se chama? — A garota olhava para mim como se a ficha também tivesse caído para ela, e foi entre os ruídos das velhas portas do casarão se abrindo que ouvi pela primeira vez o seu nome:

— Sarah, me mudei para a rua há pouco tempo. Meu pai é o novo chefe de polícia do bairro, então isso explica boa parte do que deve estar na sua mente agora, creio eu.

Sim, e explicava mesmo. O pai a ensinou muito bem a se defender e digo facilmente que se outra pessoa estivesse me acompanhando naquela desesperada fuga, acho que já teríamos morrido há algum tempo. Fechamos as portas do casarão e começamos a prestar mais atenção aos nossos arredores. O hall de entrada era gigantesco, um tapete surrado que algum dia, com certeza, fora vermelho nos levava a uma grande escadaria que dava passagem para o primeiro andar. Ainda no hall, várias portas se apresentavam quebradas, destruídas ou simplesmente inexistentes. O lugar se encontrava vandalizado. As pichações de fora da casa também cobriam todas as paredes de dentro e o lustre jazia no meio da sala, com todo o seu esplendor, perdido em cacos de vidro e ferro retorcido.
Enquanto eu admirava aquele ambiente bizarro e hostil que nos encontrávamos, Sarah observava os arredores pela janela e percebia algo interessante.

— Parece que fizemos um barulhão danado enquanto corríamos, a vizinhança inteira está acordando, talvez tenhamos alguma chance. — e com surpresa, assim como eu antes, ela se lembrava:

— Ah, você nem me disse seu nome também.

— Me chamo Gabriel, milady. — disse em tom de zombaria. Sarah brinca apontando a calibre 12 para mim, mas eu não dou muita bola e, por um momento, esquecemos da situação complicada que nos encontrávamos. Infelizmente, a calmaria não durou muito tempo.

De fora da casa, um grande vulto se via presente, correndo na direção da janela em que Sarah estava virada. Gritar não iria fazê-la reagir a tempo, então com um salto eu me jogo em sua direção para tirá-la do caminho no exato momento em que a besta atravessava a janela e adentrava na casa.

Assustada com toda a situação, ela dispara, ainda no chão, duas vezes no torço da fera, e atiraria mais se pudesse, porém a munição, para o nosso pesar, finalmente havia acabado. Frustrada, ela jogava a calibre 12 no chão no mesmo momento em que ajudo-a a se levantar para corremos juntos pela escadaria que dava ao primeiro andar do casarão enquanto a criatura chegava cada vez mais perto.

Foi neste momento que lembrei do estoque de spray de pimenta que carregava comigo. Não tínhamos mais nada para usar, então era aquilo ou nada. Passo uns para Sarah e continuamos a correr enquanto espirrávamos spray sempre que nosso perseguidor chegava mais perto. Ele batia nas paredes em agonia, visivelmente abalado com tanta pimenta e nos vimos abrindo cada vez mais espaço. Pela janela, era possível começar a perceber o nascer do sol, então precisávamos aguentar um pouquinho mais que aquela noite de terror acabaria.

Ainda assim, toda aquela correria tinha nos deixado completamente exaustos, sem contar que tanta pimenta no ar também afetava a nossa respiração e eu sabia que não conseguiríamos correr por muito mais tempo. Porém, parecia que o spray realmente estava fazendo efeito, pois já fazia um tempo que o lobisomem havia nos perdido de vista. A pimenta forte estava afetando os seus sentidos tanto quanto afetava os nossos, o que nos fez conseguir descer mais uma vez as escadas e acabamos por entrar na cozinha.

Aliás, que cozinha. Ela era tão grande que se uma família se arrumasse, dava para viver apenas nela. O lugar estava todo empoeirado, mas era fácil imaginar como tudo seria se estivesse completamente limpo. Um luxo daqueles eu só tinha visto em filmes, nem fazia ideia que aquela imensa casa destruída era tão incrível assim. Fomos correndo para atrás do balcão que ficava no centro da cozinha e ali nos encostamos para buscar um pouco de fôlego.

O meu olhar se cruzou algumas vezes com o da Sarah e no pouco tempo que nos conhecíamos, eu podia perceber que, pela primeira vez, a garota mais corajosa que eu conheci na vida estava aterrorizada, como se a sua confiança tivesse se esvaído junto com as balas da arma que nos defendia. Ponho a mão em seu ombro e percebo que ela estava tremendo. Tento passar um pouco de confiança para ela sussurrando um tímido “vai ficar tudo bem”, mesmo não tendo a menor ideia se realmente ficaria. Aguentamos por tanto tempo, só mais um pouco e o sol raiaria, salvando as nossas vidas no processo.

Infelizmente, este momento não durou muito tempo, pois um forte barulho de panelas caindo nos trouxe mais uma vez de volta para a realidade hostil em que nos encontrávamos. O nosso predador finalmente havia achado a sua presa, porém, a criatura ainda parecia confusa devido a tanta pimenta que havíamos jogado em sua face. Dou uma olhada rápida por cima do balcão e percebo que o licantropo estava com os olhos fechados, se guiando apenas pelo olfato que também devia estar bastante prejudicado. Abro devagar as gavetas da bancada que nos servia de abrigo a procura de algo que pudesse nos ajudar naquela situação e acabo encontrando, caído por trás da gaveta, um par de facas empoeiradas. Elas devem ter passado despercebidas quando depenaram a casa justamente por terem caído no vão entre as gavetas.

Sarah olha para mim e vê as duas facas que eu havia encontrado e, mesmo com todo o medo e desespero que sentia, estende a mão para ficar com uma delas. Independente da loucura que eu estava prestes a tentar, ela me acompanharia. Não pude deixar de sorrir com a situação, caso tudo desse certo e realmente conseguíssemos nos livrar de tudo aquilo, talvez eu tenha conhecido alguém que pode se tornar uma grande amiga.

Neste momento, a bancada em que nos escorávamos é sacudida com violência, me fazendo quase soltar um grito de pavor, mas Sarah foi mais rápida do que meus instintos, tapando minha boca com uma de suas mãos enquanto a outra checava se o seu coração ainda estava em seu peito ou se tinha saído pela boca. Enquanto nos entreolhávamos tentando ouvir onde o lobisomem se encontrava, começo a sentir um forte cheiro de carne podre que me embrulhou o estômago. Era como deixar uma geladeira cheia de carne, tirar sua refrigeração e abri-la uma semana depois.

Quando olho para cima, consigo ver os dentes afiados que nos perseguiram por toda a noite, sem contar com as garras que afundavam na bancada de metal como se ele fosse feito de papel machê. Seus olhos estavam fechados e ele fungava muito por conta

da pimenta e eu tinha quase certeza que ele não sabia realmente que estávamos sentados bem debaixo de seu nariz. Era a oportunidade que precisávamos. Chamo a atenção da Sarah e faço um sinal para ela fazer silêncio enquanto dou rapidamente as instruções com gestos bem diretos e ensaio uma contagem regressiva:
1… 2… 3!!!

Ao fim da contagem, nós levantamos e cravamos as facas na mão da besta com toda a força que nossos corpos cansados permitiam e o resultado foi muito melhor do que o que esperávamos. Quando as facas tiveram contato com a carne de nosso perseguidor, ele urrou de dor de uma forma que nenhuma bala disparada pela calibre 12 conseguiu fazer. O meio homem e meio fera tentava se desvencilhar do balcão, mas seja pela dor que sentia ou por algum outro motivo que não tínhamos conhecimento, ele se mostrava incapaz de se libertar.

Foi só então que algo me veio a mente, talvez aquelas facas fossem feitas de prata. Sem pensar duas vezes, eu seguro o braço da Sarah e puxo-a correndo para fora do casarão sem nem ao menos olhar para trás. Quando enfim chegamos do lado de fora, nos espantamos. Toda a vizinhança realmente nos esperava e, por trás daquele mar de pessoas, o sol raiava lindo, brilhando sobre as cabeças da multidão. Estávamos salvos.

Com os portões abertos, não consigo segurar o choro, e quando olho pro lado, vejo que Sarah também chorava, porém, no meio de todo aquele ranho e lágrimas, um sorriso se formava. Se grandes amizades florescem em tempos difíceis, acho que arrumei uma amiga para a vida toda.

Entramos no carro de polícia enquanto uma guarnição adentrava no casarão para prender “o lobisomem da Rua Brayner”, como ficou conhecido depois do ocorrido, mas quando eles voltaram de lá com as mãos vazias, um calafrio percorreu toda a minha espinha. Na mensagem gravada em sangue no muro da D. ª Atlanta, havia mais um alvo a ser predado e isso não havia acontecido. Mesmo que ninguém tenha sido atacado após toda aquela situação, eu nunca mais consegui dormir tranquilo em noites de lua cheia.​

FIM!
 
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